Restituição

FRANCISCO LUÍS PARREIRA*

Os participantes são, na maioria, jovens, estudantes ou tão-só militantes do talento doméstico que hoje querem satisfazer em casa emprestada: o de leitores. Como se compreende que façam aqui acto de presença? Que pressupostos foram estabelecidos para que a lição poética possa ser articulada e admitida? Não falo do a priori da cena; sob este aspecto, tudo corre pelo melhor porque os organizadores, de uma forma que se tem de agradecer, já pensaram em tudo: separaram as fotocópias, que agora aguardam distribuição, indicam aos tardios as vacaturas do recinto e, em breve, quando tudo se acalmar, repartirão pelos presentes as vozes dramáticas. Resta aos participantes acomodarem-se nos coxins e almofadas espalhadas pelo chão, alguns encostados às empenas das estantes, sem perturbarem o alinhamento das edições perfiladas, e a maior parte onde couber, recolhendo os pés, na imperfeita flor-de-lótus com que os antigos talhadores formavam na madeira pintada os íntimos escribas, as fotocópias no colo ou semi-erguidas à melhor incidência da luz, costas contra costas, apontando a todas as direcções, o que é, de todos, o melhor sinal, porque é a constelação visível, contornada na semiobscuridade do local, de que na relação procurada não vai haver visualidades extrínsecas, a ordenar pela vulgar artificialidade do espectáculo teatral. Naturalmente, ninguém teria vindo aqui ler uma Antígona se a sua biografia não tivesse sido agraciada, algures num passado acrónico, com a possibilidade do desligamento aberta nos textos; mas também ninguém chegaria, só com isso, a enfrentar a falta de estacionamento ou o jantar abreviado para, numa amena noite de Junho, se refugiar num salão ou capítulo de mosteiro mudado em biblioteca e empreender o breve romance de uma leitura a voz solta. Há decerto a questão da iniciativa, do motivo escolhido, livremente e a troco de nada, que nos traz ao chão de pedra e às costas coladas. Mas têm de ser observados certos complementos de urgência para que seja desejável experimentar um estar no mundo como este, que é também um gesto peremptório e uma declaração de ligeireza. Nada de assuntos de vida ou de morte, de coisas últimas e essenciais, mas algo tão-só da ordem dos prolegómenos, sem obrigação de resultados ou consequências. Ler um texto em grupo só acontece porque ninguém reconhece em torno o mundo em que desejaria viver – e é tudo.

E agora forço a escala menor de uma intriga explicativa e medito: o que aqui sucede é uma restituição; restitui-se, a estes jovens, a felicidade da leitura social, que a escola não lhes quis dar. É uma omissão inexplicável ou vergonhosa que os cursos de teatro e de literatura não reservem horas certas para a leitura colectiva, que à voz e ao ouvido não seja dado supervisionar o ponto em que a escrita vai neste momento, que esta não possa expandir, em torno destas pessoas, para envolvê-las, um campo de fidelidade em círculos concêntricos, como os da difusão acústica ou os do parentesco totémico. Este é um lugar bem concertado a essa restituição: as bibliotecas e os mosteiros nunca quiseram ser locais de silêncio, mas sim locais destinados à perfeita integração do som, em especial o da voz, na ordem da criação; por isso acolhiam aquela peculiar tecnologia que vivia da implicação do olhar com a voz e cujos segredos pertencem a uma fenomenologia do erotismo: o manuscrito e a sua scriptura continua. Quando Agostinho, nas Confissões, faz reparo do hábito de Ambrósio, de ler apenas com os olhos e o espírito, só consegue apaziguar a sua perplexidade com considerações tocantes à privação táctica: o velho monge silencia a leitura para ocultar o conteúdo do texto ou para poupar a voz gasta, já inapta para o requisito do sentido: para a lectio, a correcta determinação dos fonemas grafados, e a narratio, a extracção do que no texto se oferece ao entendimento. Ambas funções são atribuição da voz solta, que é a única garantia de desocultação do texto.

As vozes mostram-se desiguais: umas delatam o hábito da leitura pública, outras, a incursão imperita, ainda probatória, na circunferência erótica. Por vezes, erram a leitura, mas esses erros veiculam o murmúrio inicial da linguagem, o seu significado garantido mínimo, que permanecerá fechado em si mesmo se a linguagem não falar e a voz não errar. Sem murmúrio e sem erro, tudo o resto é uma falha: por exemplo, a falha do teatro de palco e de audiência, que se ensaia, que vive de lisonjear a formalidade de um silêncio unilateral e apenas espera do público o aplauso. É tão difícil encontrar alguém que saiba apenas ler; a maior parte interpreta, isto é, barra o murmúrio e, com isso, a ocorrência factual do discurso. A leitura amadora é mais rica de protocolo, mais aliada das declinações do amor quando os amantes, nos provisórios miradouros da sua vertigem, ajustam as almofadas e lêem a dois. Esta inserção da informalidade existencial no aberto dos textos não a sabem os palcos nem as escolas. É por isso que aqui tem lugar uma segunda restituição: a do texto teatral a si mesmo. A sua interpretação instrumental nunca retém a totalidade dos seus direitos; ele persistirá sempre enquanto situação mantida na sua complexidade natural, indiferente ao pensamento que representa porque não tem tempo para esse tipo de considerações: está entregue à exposição dos seus próprios impasses. Antígona e Creonte são agora, não o efeito de uma produção discursiva autorizada, mas algo que emerge de entre as linhas fotocopiadas: um corpo-natureza que, à vista de todos, dá a ler quem está a lê-lo.

*Professor.

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**19 Junho 2018++
Mosteiro de São Bento da Vitória – Centro de Documentação

Antígona

de Jean Anouilh
coordenação Nuno M Cardoso, Paula Braga
organização Teatro Nacional São João | Leituras no Mosteiro

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna