Um bailado de pássaros nas folhas de um lago

JOÃO PAULO SOUSA*

No início, havia a água, a invadir lentamente o palco, ou talvez não no início, mas a sua presença tornou-se tão forte que retroactivamente se impôs, se assumiu como dominante. A água era uma presença física, visível, audível, que trazia consigo a memória de Veneza; contudo, era também uma metáfora, porque impunha limites aos movimentos das personagens, obrigava-as a desenharem arriscadas coreografias, a encenarem uma dança instável, e, nessa teia líquida em que as aprisionava, no desequilíbrio físico a que as submetia, prolongava o desajuste relacional em que se envolviam. Algumas personagens mentiam e traíam, denunciavam-se à nossa frente, e quase ao mesmo tempo – ou talvez até em simultâneo – desenhavam delicadas coreografias, traçavam volutas aéreas, à beira de uma queda cada vez mais previsível, porém sempre adiada. Os sapatos de Dom Márcio pousavam leves numa mesa, para daí serem retirados, e de novo se erguerem a um patamar onde nunca haviam de se fixar; os sapatos de Dom Márcio compunham um bailado envolvente, quase marginal em relação à dança dos corpos – bem ancorado, no entanto, na memória de quem viu o espectáculo –, nesse centro de onde tudo irradiava e para onde tudo convergia: o café, ou o verdadeiro protagonista da peça de Carlo Goldoni.

Era também no centro, mas do palco, que se erguiam cubos pretos (seria talvez mais rigoroso falar de um módulo cenográfico, porém a memória impõe imagens, não conceitos), tão admiravelmente aptos a serem retirados de cena, para depois regressarem, com uma nova e surpreendente eficácia, como um espaço em permanente mutação.

Durante mais de duas horas, no entanto, o centro do mundo era o café. Para aí convergiam todos, a começar pelo seu dono, que chegava por uma porta lateral, de acesso dos espectadores à sala, decerto a sugerir que todos nós – os privilegiados, os que assistíamos – estávamos na esplanada, num lugar de características únicas para se assistir a um desfile de dramas humanos. Como não sorrirmos, então, diante do maldizente Dom Márcio (inesquecível Ivo Alexandre), ao ser-nos dado a perceber o prazer infantil que lhe advinha de provocar, ou intensificar, os equívocos da peça? E como não pensarmos em Jacques Tati – em Playtime, sobretudo – ao presenciarmos os subsequentes encontros e desencontros visuais, cuja complexidade desafiava tão regularmente a nossa atenção?

A água, contudo, não nos abandonava; pelo contrário, impunha cada vez mais a sua presença, ao ponto mesmo de serem acrescentados pequenos estrados ao cenário. Ficava, assim, construído um corredor irregular, instável – rigoroso eco das relações humanas nesta peça –, por onde os actores se viam forçados a caminhar, em movimentos à beira do desequilíbrio, com ameaças de queda iminente. É um bailado de pássaros nas folhas de um lago, terei pensado, e a leveza assim expressa emergia do estado calamitoso em que as personagens pareciam afundar-se, com as roupas já quase todas molhadas, e os saltos, de estrado em estrado, tornavam-se na única possibilidade que lhes era conferida de preservarem alguma correcção, alguma dignidade aparente. A instabilidade assim exposta, porém, era o outro lado da extraordinária capacidade de adaptação daquelas figuras, que haviam de expulsar o maldizente Dom Márcio de cena, levando-o, na sua fuga, a também usar uma das portas de acesso dos espectadores à plateia, como se aquela saída fechasse o ciclo iniciado, mais de duas horas antes, com a chegada do dono do café. Fechava-se inquestionavelmente o ciclo, mas subsistia a alegria das personagens ainda em cena, e subsistia sobretudo a água, que, de resto, nunca nos deixara. Alcançada a tranquilidade para quase todos, também a água podia repousar, pacificada, no fim.

*Professor.

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25 Janeiro – 24 Fevereiro 2008
Teatro Nacional São João

O Café

de Carlo Goldoni
encenação Giorgio Barberio Corsetti
produção Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna