Reivindicar a cidade

SARA BARROS LEITÃO*

No momento em que sou desafiada a escrever uma memória impressiva de um espectáculo que tenha passado pelo Teatro Nacional São João, pergunto-me: que memória pode contribuir para contar uma história do teatro da nossa cidade? E surgem, de repente, três palavras: memória, teatro e cidade.

Viajo até Esta é a minha cidade e eu quero viver nela, uma criação do Teatro do Vestido, com direcção de Joana Craveiro. Se a memória não me falha, esteve duas vezes no Mosteiro de São Bento da Vitória, embora também tenha passado por outras cidades e, em cada uma delas, os intérpretes mergulhavam nas ruas, nos cafés, nas pensões, e recolhiam histórias, momentos, sensações, lendas ou mitos urbanos. Era a partir dessa recolha da – e sobre a – cidade que o espectáculo ganhava forma.

Lembro-me de ouvir dizer que este espectáculo foi criado em pouco mais de três semanas. O que pode parecer um tempo recorde, mas que, para o ritmo de criação do Vestido, parecia ser o tempo justo. Só que isso eu ainda não sabia.

Trabalhei com a Joana, eu como actriz e ela a dirigir, noutro espectáculo também co-produzido pelo TNSJ, anos mais tarde, chamado Espólios. Também aí o ritmo de trabalho foi alucinante e as três semanas foram tão intensas como vários meses. O trabalho da Joana e do Vestido marcou profundamente a minha vida, quer como espectadora, quer como criadora ou artista. E como o teatro é como o amor (curiosamente, também o Vestido, em co-produção com o TNSJ, fez um espectáculo sobre o amor, no Palacete Pinto Leite, também ele arrebatador e também ele importante para mim), dizia eu, como o teatro é como o amor, o primeiro beijo nunca se esquece. Assim, o momento em que me cruzei com Esta é a minha cidade e eu quero viver nela tornou-se um marco na minha vida.

Lembro-me de que eram sete actores e que cada um habitava um lugar nas ruas que circundam o Mosteiro. O público era dividido em sete grupos, cada um com um frente de casa, que os guiava num percurso pela cidade, indo ao encontro de cada intérprete, que os esperava num ponto e terminava o monólogo noutro. O público seguia para o actor seguinte e, durante esse tempo, os actores tinham de arrumar toda a cena, beber água, e correr para o ponto inicial, onde iriam receber o grupo seguinte. Em cada noite, os actores repetiam o monólogo sete vezes, num espectáculo que demorava quase três horas. A cena final acontecia no claustro do Mosteiro. Cada grupo que chegava era recebido por uma exposição, onde já estavam outros espectadores que os aguardavam. Trocavam impressões, comentavam, riam e perguntavam onde se podiam sentar um pouco. Os actores/criadores eram, depois, recebidos com aplausos, e agradeciam servindo um caldo verde quente, em panela ensinada, que todos os dias se ia buscar a um restaurante ali perto.

Sei tudo isto porque, dias antes da estreia, foi necessária a colaboração de uma contra-regra. A logística do espectáculo tornou-se mais complexa do que o previsto. Nunca tinha sido contra-regra, também nunca tinha trabalhado no TNSJ, e nunca tinha visto um espectáculo do Vestido. Estava aqui a receita que iria influenciar a minha vida e o meu modo de olhar para as coisas.

Talvez não caiba aqui uma dissertação sobre a forma como o trabalho do Vestido, a sua militância e engajamento político foram fundamentais na minha construção. Ou como a estética e o modo de criação entraram em mim como uma espinha vertebral.

Fui a mais assídua espectadora. Vi todas as récitas, estrategicamente escondida nos becos das ruas, para dar apoio aos actores entre as suas cenas. Todos os dias, tinha de comprar sete bolinhos de bacalhau e sete minis para um dos actores usar durante a cena – esse café já não existe. Ia buscar a panela de caldo verde a um restaurante que entretanto foi remodelado e passou a servir hambúrgueres gourmet.

Contribuo para a memória do nosso teatro, escrevendo sobre um espectáculo que parte das memórias das ruas para reivindicar a cidade. O que, passados sete anos, não é coisa pouca para este Porto que agora se constrói.

*Atriz, encenadora.

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27-30 Março 2012
Mosteiro de São Bento da Vitória

Esta é a minha cidade e eu quero viver nela

cocriação e direção Joana Craveiro
coprodução *Teatro do Vestido, Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna