“Obrigado, meu amor, por seres um farol de bestialidade nesta longa negra noite portuguesa”

PEDRO PENIM*

“João, João!”, chamava a Cláudia Jardim no espetáculo Dedicatórias, correndo do fundo até à boca de cena. “Tenho uma coisa para te dizer, João!”

O “João” era o Figueira Nogueira, um dos (muitos) destinatários das incontáveis dedicatórias (quase todas autobiográficas, mas nenhuma declarada) que se faziam em cena. Eu sabia que o “João” era aquele mesmo João, assíduo colaborador da companhia Sensurround, produtor, assistente, costume designer extraordinaire, pau para toda a obra, cúmplice e amigo do coração da encenadora, Lúcia Sigalho, que assim lhe retribuía a sua dedicação inscrevendo o seu nome no espetáculo, partilhando com ele a sua perplexidade pelo estado das coisas.

É que Dedicatórias era um espetáculo-resposta ao estado das coisas no verão de 2000, em forma de muitas declarações de amor, ao mesmo tempo românticas e desesperadas; sucessivas provas de um amor desmedido, aqueles amores de baba e ranho que têm prazo de validade mas que farão para sempre doer os ossos; oferendas fragmentadas regadas a chansonnettes de cortar os pulsos e (literalmente) regadas pela própria Lúcia com uma água/alimento poético para umas flores esperançosas (ou seriam de antanho?), que na cena final surgiam, já crescidas, no solo do teatro (fértil em utopias, é certo, mas muitas vezes estéril em condições favoráveis à criação, em espaço para a arte).

Porque não era com cara de esperança que a Lúcia pegava no regador, era com cara de “J’accuse”, de “Io so”. As Dedicatórias (sim, assim se referia o espetáculo, no feminino plural, sublinhando aquilo que a Lúcia insistia ser a sua condição de não-teatro) foram originalmente pensadas para o seu “solo sagrado”, o do Armazém do Ferro A. da Costa Cabral no bairro lisboeta de Santos, edifício onde a encenadora tinha criado e apresentado uma fatia considerável do seu trabalho e que estava ameaçado por uma demolição, exílio forçado contra o qual este espetáculo resistia com raiva, contra o qual a Lúcia regava com raiva, denunciando tal violência e transpondo-a, a cada cena, para as relações afetivas. Seria eventualmente esta a assinatura de Lúcia Sigalho como artista, a tensão entre o público e o privado, a tensão entre o amor ao teatro e o mal que lhe fazia (“Ela amava-o, amava-o, amava-o, amava-o! E ele? Ele era amado, era amado, era amado!”).

A Lúcia era mad about the boy, loucamente apaixonada por um espaço de liberdade artística, por um oásis branco, “farol de bestialidade” no meio de uma longa noite que se adivinhava para o teatro português (quem sobreviveu sem mazelas aos tempos de Sasportes, aos tempos dos artigos insultuosos do porta-voz para a Cultura do PSD, que levante o braço), uma noite que ia chegando para a própria encenadora e que ela combatia neste espetáculo, anunciando e acusando a desajuda, o desinteresse (às vezes, um ódio inexplicável) por salvar um teatro que ia morrer.

Para as apresentações no Teatro Nacional São João, naquela que era a cena declaradamente mais politizada, uma coreografia onde se empunhavam cartazes sob o signo “Quando eu for Ministro da Cultura”, e com a certeza de que a Lúcia quereria aproveitar o facto de estar em terreno mais institucional, resolveu usar uma canção que não estava na versão de Lisboa, o poema glorificante da pós-revolução, o “Portugal Ressuscitado”. E a Lúcia repetia, “não quero ser infeliz”, mesmo sabendo que parte do seu mundo estava em derrocada iminente.

– As Dedicatórias deixaram o Porto e o Teatro São João (onde se apresentaram quatro vezes) no fim de setembro de 2000, para rumarem ao Armazém a fim de retomar e finalizar o seu manifesto-poema.

– O Armazém do Ferro deixou Lisboa para sempre no fim de 2002 e, apesar do seu lugar estar agora ocupado por um parque de estacionamento medonho, quero acreditar que o edifício se desmaterializou em pipocas, “pipocas, assim estaladiças e apetitosas” de que ainda nos andamos a alimentar com gosto.

– A Lúcia deixou o teatro e Portugal em 2009. “Prefiro estar sozinha/ sem ilusões, falsas quimeras”, é assim que a idealizo, a fazer o playback da Ágata, de vestido amarelo (como o que usava a Sara Graça nessa mesma cena do espetáculo), e igualmente e ainda (muito) zangada, e igualmente e ainda (muito) apaixonada.

– O João deixou este mundo em abril de 2018. E imagino-o agora, lindo, de vestido/tenda esvoaçante e branco, o mesmo que tinha desenhado e cosido para a Cláudia Jardim fazer de Marilyn especulativa ao som de “My Heart Belongs to Daddy”.

*Ator, encenador.

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27-30 Setembro 2000
Teatro Nacional São João

DEDICATÓRIAS

direção Lúcia Sigalho
produção Sensurround – Companhia de Teatro

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1 _

fotografia João Tuna