Alfabeto da melancolia

Nuno Carinhas*

Seria preciso escrever à luz de velas de cena antiquíssima para voltar à comoção da tarde de 12 de Julho de 2012, na Salle des Fêtes de Saze. Lá dentro, o lugar: uma caixa preta 4x4x3 – “cegos de noite, cegos de dia/ cegos do mundo”, já a esquecermo-nos de nós, imersos num espaço irreconhecível ou não-lugar: a caixa do mágico, com o mágico e a sua partenaire dentro –, corpos de preto vestidos, de rostos, mãos e pés empalidecidos. Ritual da pele e sopros, amorosamente revelados numa procura primordial, sagrada. (Imagine-se uma vara ou seta que percorre o espaço em câmara lenta para se ir alojar na alma dos amadores de segredos.) Os gestos são novos mas carregados de reminiscências. Som, luz e fragmentos dos corpos aparecidos em frestas organizam-se num alfabeto da melancolia, “entre o coração e o mundo”, o amor atravessado de despedidas. Chegados ao fim, o desejo é permanecer para repetir a contemplação do mundo por esses dois seres; prolongar o encantamento da história demasiado breve e perfeita; ficar, para agarrar o mistério e esperar pela revelação; habitar o espaço para o qual fomos convocados mas que não nos pertence.

Josef Nadj é mestre da suspensão, da apneia tranquila. Resta-nos respirar com ele e esperar pela próxima construção da utopia que se segue. Saímos para a realidade festivaleira de Avignon com a sensação de que o mais importante da 66.ª edição estava visto e selado – fôramos escorraçados do paraíso. Quatro meses mais tarde, a mesma caixa preta foi montada no meio do claustro do Mosteiro de São Bento da Vitória, cuja arquitectura e memória serviu de contentor mais do que perfeito para albergar o mesmo ritual de Josef Nadj com a bela Anne-Sophie Lancelin. Assim se cumpriu ATEM le souffle, a co-produção do Teatro Nacional São João de que mais me orgulhei. Depois disso, pudemos desfrutar dessa outra inquietação, Mnémosyne, espectáculo e exposição de fotografia (Janeiro de 2019), sempre com o mesmo espanto, admiração e prazer.

*Encenador, cenógrafo, figurinista. Diretor artístico do Teatro Nacional São João entre 2009 e 2018.

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21-25 Novembro 2012
Mosteiro de São Bento da Vitória

ATEM le souffle

direção e coreografia Josef Nadj
produção Centre Chorégraphique National d’Orléans, Jel Színház
coprodução Festival d’Avignon, Théâtre de la Ville – Le CENTQUATRE-PARIS, Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna