O apocalipse do sentido

ANTÓNIO SOUSA RIBEIRO*

Era uma vez um rei que tinha três filhas. A história tem, na aparência, a simplicidade de um conto popular, no seu recurso a um fundo narrativo arcaico, muito distante no tempo ou, melhor, situado nesse fora do tempo que é o tempo do “era uma vez”. Por isso, qualquer adaptação contemporânea visando uma “actualização” tem de ficar sempre aquém - é a partir do seu tempo próprio que o texto interpela o contemporâneo, a partir de um tempo de desmesura em que a progressão do drama vai abrindo sucessivos abismos em qualquer aparência de normalidade e em que o corpo místico, o corpo político do rei não tarda a ceder o passo ao seu outro corpo, humano, demasiado humano, até ao ponto em que, na sua identidade esfarrapada, toda a distinção entre o rei e o bobo parece desaparecida.

Esse desaparecimento é concomitante com a progressiva centralidade com que se vai revelando a questão essencial da tragédia, a questão da crise do sentido e da representação: no universo do drama tudo se tornou precário e inconstante, nada encontra já uma correspondência perfeita nem uma justa medida. Mais do que isso, já não há signos estáveis – significantes como “amor”, “natureza” ou “autoridade” estão numa deriva sem fim, deixando o leitor ou o espectador sem saber a que se agarrar. O que fica, pois, é a consciência apocalíptica de um fim em que - diferentemente de Hamlet, por exemplo, em que um “time out of joint” encontra, apesar de tudo, uma possibilidade de regeneração - a esperança de que o mundo possa vir a “entrar nos eixos” jamais adquire qualquer consistência. Porque nada é o que parece ou o que seria legítimo esperar se o sistema de representação estivesse intacto, o sentido das palavras transporta uma tal ambiguidade que tudo o que é sólido se desfaz em ar e não subsiste já qualquer universo de valores estável em que possa fundar-se uma esperança de regeneração.

Por isso é tão poderosa a dimensão satírica da tragédia e por isso também a figura do rei se institui crescentemente como instância satírica - nos dois últimos actos, a figura do bobo, que desaparece de cena, tornou-se dispensável, já que é o próprio rei a assumir a função dramática desta figura. E por isso também a presença da violência vai muito além dos episódios de agressão, de violência física ou de morte. A violência, em Rei Lear, é intersticial, insidiosa, penetra o âmago mesmo de todas as relações humanas, justificando a desmesura da linguagem.

Rei Lear é um desafio desmesurado para qualquer tradutor, encenador ou actor. O desafio é total, já que, talvez mais do que na revisitação de qualquer outro clássico, antigo ou moderno, as respostas são sempre provisórias e cada regresso é sempre o vislumbrar de novas articulações e o formular de novas interrogações. Na memória deste espectador, a revisitação empreendida pelo Teatro Nacional São João em 2016 permanece como um momento fundamentalmente interrogativo. Não no sentido das interrogações inevitavelmente suscitadas por opções da tradução ou da encenação, por natureza sempre controversas, mas num sentido mais fundamental que confirma o êxito desta produção: caído o pano, o que ficava da violência extrema do universo da tragédia era a mais funda das interpelações sobre o mundo e sobre a linguagem, sobre esse mundo em que são possíveis as coisas inomináveis que só a linguagem da arte é capaz de nomear.

*Professor, tradutor.

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30 Junho – 17 Julho 2016
Teatro Nacional São João

Rei Lear

de William Shakespeare
encenação Rogério de Carvalho
coprodução Ensemble – Sociedade de Actores, Teatro Municipal de Bragança, Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna